de sofrer e amar, a gente não se desfaz.

25.9.12

anotações de uma manhã outonal chuvosa, mais que tudo, portuguesa


Por entre a casaria, em intercalações de luz e sombra – ou, antes, de luz e de menos luz – a manhã desata-se sobre a cidade. Parece que não vem do sol mas da cidade, e que é dos muros e dos telhados que a luz do alto se desprende – não deles fisicamente, mas deles por estarem ali. 
Sinto, ao senti-la, uma grande esperança; mas reconheço que a esperança é literária. [...]  A esperança que pus nela, se a houve não foi minha: foi a dos homens que vivem a hora que passa, e a quem encarnei sem querer, o entendimento exterior neste momento. [...]



A minha consciência da cidade é, por dentro, a minha consciência de mim. 
Lembro-me de repente de quando era criança e via, como hoje não posso ver, a manhã raiar sobre a cidade. Ela então não raiava para mim, mas para a vida, porque então eu (não sendo consciente) era a vida. Via a manhã, e tinha alegria; hoje vejo a manhã, e tenho alegria, e fico triste. A criança ficou mas emudeceu. Vejo como via, mas por trás dos olhos vejo-me vendo; e só com isto se me obscurece o sol e o verde das árvores é velho e as flores murcham antes de aparecidas. Sim, outrora eu era de aqui; hoje, a cada paisagem, nova para mim que seja, regresso estrangeiro, hóspede e peregrino da sua presentação, forasteiro do que vejo e ouço, velho de mim. 


Bernardo Soares, Livro do desassossego

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